sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Entre a desgraça e a genialidade

O texto abaixo escrevi há alguns anos (2008) e fora publicado no sensacional e saudoso FORUMPCs. É dentre centenas já publicados um dos meus favoritos! Talvez porque fale de uma pessoa genial sobre a qual li mais de uma biografia. Mas também por não ser um texto sobre tecnologia como as pessoas poderiam esperar vindo de mim. Mas é sim um texto tecnológico, de grande importância para o conhecimento universal, sobre o personagem descrito (não meu texto, é claro)!
Flavio Xandó (Setembro/2013)


A evolução do conhecimento da humanidade tem passagens realmente singulares e personagens únicos. Resolvi resgatar história deste que é um de meus personagens preferidos. Sua genialidade é ainda maior quando se sabe o lado humano e terrível de sua vida. Nasceu em meados do século dezesseis. Mirrado, raquítico, seus pais o deixaram para morrer, mas ele teimosamente sobreviveu. Aos cinco anos de idade adquiriu varíola que o deixou quase cego e as mãos deformadas. Seu único irmão era epilético. Bem menino foi obrigado a trabalhar na taverna de sua mãe, logo após seu pai ter abandonado a casa, servindo os viajantes bêbados que o tratavam muito mal. Teve nos estudos a tábua de salvação. Destacou-se, entrou para o seminário, mas lhe foi negada sua intenção de se tornar pastor luterano. Sua erudição em matemática e conhecimento de astronomia e astrologia lhe trouxe algum prestígio com alguns nobres que o contratavam para fazer horóscopos e mapas astrais que ele detestava (preferia dedicar-se à astronomia), mas fazia para ganhar alguns trocados. Era contratado pelos nobres, porém raros foram os meses que recebia seu estipêndio (salário) e por isso vivia como completo miserável.

Casou-se. Sua esposa antes doce e amável revelou-se irascível, maldosa, irritante e vingativa. Teve muitos filhos. Todos nasciam e morriam logo após o parto ou apenas alguns dias depois. Somente seu nono filho sobreviveu, mas por apenas três anos. Mais quatro filhos nasceram e morreram. Sua esposa morreu completamente louca. Apesar de religioso fervoroso foi excomungado por suas crenças contrárias aos ensinamentos da Igreja. Sua mãe foi acusada de bruxaria e teve que se dedicar por meses à sua defesa. Completamente endividado e pobre tentou cobrar quem lhe devia e numa viagem adoeceu gravemente. Morreu numa estalagem de beira de estrada, na miséria, em um quarto escuro, sem ajuda nem companhia. Nem sua segunda esposa que fora das poucas coisas boas em sua vida estava com ele. Foi enterrado em um cemitério o qual anos depois foi completamente devastado e saqueado por uma batalha religiosa (Guerra dos Trinta anos) . Não sobrou um só osso dele, apenas uma lápide, ditada por ele mesmo em seu leito de morte que diz :

“Medi os céus e agora estou aqui medindo as sombras da terra. O espírito era celeste, aqui jaz a sombra do corpo” 


Este é o breve resumo da vida do alemão JOHANNES KEPLER, que junto com COPÉRNICO E GALILEU revolucionaram a astronomia. Mas porque KEPLER é realmente especial? Não bastasse ele ter sido desgraçado em toda sua vida, apesar disso, encontrou tempo para ser intuitivo, dedutivo, racional e genial. Enumerou as suas três leis, que apenas citarei sem entrar em maiores detalhes:

- Primeira lei de Kepler : A curva descrita por cada planeta é uma elipse, da qual o sol ocupa um dos focos – até então todos e o próprio Kepler assumiam que a órbita perfeita era a circular. 



- Segunda lei de Kepler : O raio vetor heliocêntrico de um planeta descreve em torno do sol áreas proporcionais à unidade de tempo – em outras palavras, as velocidades orbitais são maiores perto do sol e menores longe do sol, cobrindo áreas iguais em tempos iguais.


- Terceira lei de Kepler : Os quadrados dos tempos gastos pelos planetas para percorrer suas órbitas, são proporcionais aos cubos de suas distâncias médias do sol – esta lei tem conseqüências dramáticas uma vez que descoberta esta constante universal abriu o caminho para a formulação da lei da gravitação por Newton quarenta anos depois.


Devaneio Cósmico e geométrico

Eu adoraria discorrer sobre os detalhes astronômicos, assunto que não domino mas gosto muito, mas é sobre o lado intuitivo e brilhante de Kepler, o que mais me fascina que desejo destacar. Sua mente diferenciada e sofrida era capaz de devaneios incríveis. Kepler influenciado por seus estudos religiosos desenvolvera a idéia de que ”Deus é o Geômetra supremo, construiu o universo com formas geométricas perfeitas”. Ele levou tão a sério esta sua crença que em um determinado momento dedicou parte de sua vida a tentar montar o quebra-cabeças celeste que se lhe apresentava. Antes de formular as suas precisas leis (já citadas) desenvolveu um raciocínio que visava explicar as órbitas dos planetas conhecidos e suas distâncias ao sol (ele assim como Galileu tinham ciência naquela época de que a Terra girava em torno do sol – ao contrário da cultura religiosa que pregava a Terra no centro como  Ptolomeu enunciara).

Sua inspiração fora um dia, que estava a ministrar aula de matemática. Era um dia muito quente e os alunos foram assistir sua aula para se refugiar do calor, não por seus dotes pedagógicos que eram fraquíssimos. Traçou um círculo no quadro. Desenhou um quadrado inscrito neste círculo. Ficou olhando aquele estranho desenho. Mudo, calado, por quase 30 minutos. Quando os alunos iam desistir da aula ele saiu correndo deixando todos a sós, como se tivesse desvendado um grande mistério. Tinha!!  Transportou do plano para o espaço seu desenho. Tomou os sólidos perfeitos de Platão (cubo, tetraedro, octaedro, icosaedro e dodecaedro – que são os únicos sólidos possíveis construídos com polígonos regulares) e fez um conjunto de inscrições (um dentro do outro). Descobriu que as distâncias entre as arestas dos sólidos convenientemente inscritos eram EXATAMENTE proporcionais às distâncias dos planetas conhecidos aos centros de suas órbitas! Além da Terra cinco eram os planetas conhecidos, e cinco eram os sólidos perfeitos de Platão. SIM DEUS USARA FORMAS PERFEITAS PARA CONSTRUIR O UNIVERSO!


Modelo do universo de Kepler usando os sólidos de Platão inscritos uns nos outros

Não bastasse esta descoberta cósmica, Kepler em busca da perfeição traduziu em cálculos precisos suas construções geométricas (geometria analítica espacial). Ao fazer isso não ficou totalmente satisfeito. Se houvesse um outro planeta situado a uma certa distância, o “encaixe” seria exato e DIVINO. Deveria existir um planeta desconhecido numa órbita entre Marte e Júpiter que não fora ainda descoberto. Por este caminho “geométrico” previu a distância e mesmo a massa que deveria ter este planeta “perdido”. Quase duzentos anos depois foi encontrado EXATAMENTE na região prevista por Kepler o CINTURÃO DE ASTERÓIDES, fruto de um planeta desintegrado por uma colisão bilhões de anos atrás, com massa bem próxima da estimada por ele. Como classificar este episódio? Loucura? Devaneio? Absurda intuição? Inspiração Divina?

Após este episódio Kepler vivenciou a experiência que lhe permitiu deduzir suas consagradas leis. Trocou cartas com o astrônomo Tycho Brahe que era um exímio observador da posição dos planetas, dedicando-se particularmente ao estudo da órbita de Marte. Foi trabalhar com Tycho Brahe (que não pagava pelos seus serviços). Quando Tycho Brahe morreu herdou todos os seus estudos sobre Marte (ele os escondia de Kepler). A órbita de Marte era bizarra, pois descrevia “laçadas” no céu com idas e voltas na abóboda celeste. Tycho atribuía estas “laçadas” a conjuntos de revoluções combinadas, algo bem complicado. Kepler analisou meticulosamente todos os dados e após muitas tentativas de modelar matematicamente a órbita, RENDEU-SE e abandonou a modelagem da órbita CIRCULAR (forma sagrada e perfeita para ele) e abraçou à ELIPSE. Isso fez cair o seu dogma de figuras geométricas perfeitas. Seu racionalismo e espírito científico suplantaram sua fervorosa crença religiosa e abriu espaço para suas três consagradas leis.

Harmonia Mundi – a música do Universo

Outro exemplo de genialidade intuitiva de Kepler está descrita em um de seus livros (manuscrito) de nome Harmonia Mundi. Enquanto estudava as órbitas dos planetas percebeu diferenças de velocidade (que culminaram na enumeração de sua segunda lei). Resolveu atribuir notas musicais para cada planeta, que ao longo da órbita se tornavam mais agudas e mais graves. Cada planeta recebeu sua “partitura” traduzida por Kepler. Segundo ele Deus que era o geômetra supremo também escrevera a música do Universo. Ao agrupar todas as notas, de todos os planetas, Kepler percebeu que havia uma ruptura muito brusca da escala ao passar de Marte para Júpiter. Com cálculos matemáticos e verificando a harmonia entre as notas inferiu que deveria existir uma escala a mais entre estes dois planetas. Deduzida a escala musical deste corpo celeste desconhecido, inferindo a “música” que seria tocada por ele. Por analogia calculou a distância da órbita deste planeta. MAIS UMA VEZ, mas por um caminho completamente diferente localizou a órbita do que mais tarde se descobriu ser o cinturão de asteróides (um planeta esfacelado por uma colisão ou talvez um que jamais chegou a se formar).  INCRÍVEL!! Tanto a música como a complexa construção geométrica usando os sólidos de Platão chegaram à mesma conclusão, a existência de um corpo celeste desconhecido. CLARO que todos dirão se tratar de coincidência, mas haja competência e raciocínio intuitivo para chegar a estas conclusões!!


Tendo fortes convicções religiosas Kepler teve o bom senso, genialidade e humildade de analisar os dados e perceber que as frias e precisas observações de Tycho Brahe não se encaixavam com seu modelo de divindade e geometria do universo. Mas foi além. Teorizou e descobriu as leis fundamentais da astronomia. Esboçou os primeiros passos no estudo da gravitação deduzindo que havia uma força “magnética” que era inversamente proporcional à distância entre os astros (foi o primeiro a romper o dogma da existência de uma força divina e mágica que mantinha os astros no céu). Anos mais tarde Newton elaborou brilhantemente a lei da gravitação universal que até Einstein foi a explicação definitiva sobre o tema. Teve seus lampejos de intuição que lhe permitiram prever a existência do cinturão de asteroides por meios completamente heterodoxos. Isso tudo durante uma existência sofrida, desgraçada, miserável, passando extrema necessidade. O mérito só lhe foi dado muito tempo após a sua desgraçada existência e sua morte. Não é a toa que é considerado o pai da astronomia moderna. Quiçá a humanidade tenha pelo menos mais um “Kepler” a cada 500 anos!!

Medi os céus e agora estou aqui medindo as sombras da terra. O espírito era celeste, aqui jaz a sombra do corpo”


Um comentário:

  1. Caro ppCarvalhof super obrigado pelo elogio em relação ao meu texto. Foi uma tentativa de escrever sobre algo um pouco fora de meu dia a dia. E você tem razão, falta para a humanidade que a cada 500 ou pelo menos 1000 anos surjam mais gênios como estes que você também citou!!

    E que o grande ForumPCs viva sempre em nossa memória!! Era muito bom!!

    Grande abraço

    ResponderExcluir